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Bianca Figueira, conhecida por ter sido excluída dos
quadros da ativa da Marinha do Brasil, em razão de sua condição de
gênero, após se submeter ao processo de trangenitalização, rebateu recentemente o jurista Flávio Tartuce, por utilizar em seu livro o termo "transexualismo" para referir-se à condição das transexuais.
Atualmente Bianca é estudante de Direito da Universidade Estácio de Sá,
em Niterói-RJ e trabalha como conciliadora do Juizado Especial Cível na
referida cidade. Ao estudar temas de Direito de Família ela se deparou com o
livro de Direito Civil, Volume V, de autoria de Tartuce que dá uma
noção equivocada e ultrapassada a respeito da condição das pessoas transexuais.
Ao utilizar o termo "TRANSEXUALISMO", o jurista demonstra ter uma visão altamente preconceituosa e desconectada da realidade.
Os estudos sobre gênero, monstram claramente que os papéis masculino e
feminino são fruto de padrões sociais construídos tradicionalmente e
historicamente. Não é o órgão sexual que determina as expressões, os trejeitos
e a vestimenta adequada para o indivíduo. A essência da feminilidade ou da
masculinidade tem muito mais de construção social do que propriamente de fator
biológico ou genético, sendo INACEITÁVEL, por essa razão, que a medicina, e,
muito menos o direito, possam afirmar que a condição das pessoas transexuais
seja colocada como patologia.
As transexuais dependem de uma adequação anatômica de seu aparelho sexual
e de sua aparência física, dependendo, pois, de procedimentos a serem realizados
pela medicina que vem avançando na compreensão do tema.
Apesar de ainda resistirem à completa despatologização, o Manual
Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental utilizado pela Psiquiatria, deixou de
considerar a transexualidade como “transtorno de identidade”, com
forte carga patológica, substituindo-a por “disforia de gênero”.
Mesmo assim, no Brasil, a transexual depende necessariamente de um laudo
psiquiátrico para se submeter ao processo transexualizador, diferente do que
ocorre em países mais desenvolvidos e especialmente da nossa vizinha Argentina
que respeita os direitos da identidade de gênero, sem vinculação à absurda
avaliação psiquiátrica. Em nosso país tramita no Congresso Nacional um projeto de lei de autoria dos
deputados federais Jean Wyllys (PSOL/RJ) e Érika Kokay (PT/DF) nesse sentido.
Veja por exemplo que a medicina hoje atua não somente para o combate de uma patologia, a exemplo dos inúmeros procedimentos médicos realizados para fins estéticos e de bem estar como as cirurgias plásticas, tratamentos dermatológicos etc. Submeter-se a esses procedimentos tal como a colocação de próteses de silicone para as mulheres ou prótese peniana para homens independe, por óbvio, de qualquer laudo psiquiátrico, bastando apenas a autonomia da vontade do paciente para que tais procedimentos se realizem.
Apesar disso, segundo Bianca, Flávio Tartuce, respondeu dizendo que utilizou o
termo com base, segundo ele, na “maioria dos estudos”, fazendo remissao à
obra do ultrapassado psicanalista Henry Frignet, denominada “O Transexualismo”.
Na resposta, o jurista, por ocasião de uma nova edição, se compromete apenas a
fazer uma nota sobre os apontamentos feitos por Bianca, mantendo sua posiçao a
respeito da condiçao patológica das transexuais.
Ao jurista Flávio Tarturce que, provavelmente não vem se atualizando a
respeito dos estudos de gênero, que fazem parte das questões de direito de família e da personalidade civil, deixamos o seguinte recado: a medicina, assim como
o direito que depende de uma ordem normativa, sempre foram as ciências mais
atrasadas na compreensão da condição humana, bastando ver o tratamento que foi
dado à condição da homossexualidade, que só foi retirada pela Organizaçao
Mundial de Saúde (OMS) do catálogo de doenças (CID) em 1990, época em
que os estudos da sociologia e da psicologia, já consideravam inaceitável esse
tipo de tratamento altamente preconceituoso e ofensivo à condição
dessas pessoas.
Veja o teor da carta:
Caro Dr. Flávio Tartuce,
Fiquei deveras chateada, para não dizer muito aborrecida, com sua
abordagem sobre a TRANSEXUALIDADE (e não TRANSEXUALISMO, pois o sufixo ISMO
indica DOENÇA) no seu livro DIREITO CIVIL V - Direito de Família.
Eu sou mulher transexual, com cirurgia de transgenitalização (ou de
redesignação sexual ou de readequação sexual, e não MUDANÇA DE SEXO) já
realizada, com prenome e gênero já alterados judicialmente. Sou estudante de
Direito pela Estácio Niterói, sou Conciliadora no JEC da Região Oceânica de
Niterói há quase dois anos e sou Membro da Comissão de Direito Homoafetivo da
OAB/RJ. Além disso, sou Capitã-de-Corveta (reformada) da Marinha do Brasil,
reformada por conta de ser transexual. O Sr. já deve ter me visto em alguns
programas televisivos, especialmente no programa NA MORAL sobre TRANSGÊNEROS e
em minha última entrevista para a TRIBUNA DO ADVOGADO, edição de MARÇO2014,
sobre o título O DIREITO DE SER QUEM É,
que ganhou o prêmio NACIONAL DE COMUNICAÇÃO E JUSTIÇA 2014.
Gostaria de comentar os pontos que observei e que me atordoaram
profundamente em sua abordagem sobre o TRANSEXUALISMO (SIC) no seu livro:
1. A TRANSEXUAL feminina não QUER SER mulher. A mulher transexual já
nasce mulher, só que com o corpo destoante de sua identidade de gênero e
necessita de forma premente das mudanças corporais e cirurgias para adequar seu
corpo à sua mente, pois o contrário não dá para ser feito;
2. A TRANSEXUALIDADE não é uma PATOLOGIA, não é uma ENFERMIDADE, isto é
pacífico até mesmo pelo próprio CFM que já se manifestou várias vezes sobre
essa posição. Consulte o CFM, faça uma indagação a eles a esse respeito. A
transexualidade infelizmente ainda figura no CID-10 (Código internacional de
Doenças, elaborado pela OMS) como TRANSTORNO DE IDENTIDADE DE GÊNERO e no DSM-5
(Manual Estatístico e Diagnóstico de Saúde Mental) revisado este ano passando a
adotar o termo DISFORIA DE GÊNERO e não mais transtorno de identidade de
gênero, demonstrando uma forte tendência de retirá-la dos referidos manuais
dentro em breve, assim como aconteceu com o HOMOSSEXUALISMO (SIC) que deixou de
ser doença em 1985 pelo CFM e em 1990 pela OMS, passando a ser chamado de
HOMOSSEXUALIDE, uma condição humana. Isso tudo por graça a um movimento mundial
STOP TRANS PATHOLOGIZATION 2012 que luta pela retirada da transexualidade como
psicopatologia dos manuais. O fato de constar ainda no CID legitima o
PRECONCEITO e a DISCRIMINAÇÃO das pessoas transexuais e respalda órgãos
públicos e entidades provadas a afastarem, a dispensarem, a expurgarem os
transexuais de seus quadros, como aconteceu no meu caso com a Marinha do
Brasil, que após 21 anos de bons serviços prestados, fui afastada
compulsoriamente e arbitrariamente de minhas funções, por ser transexual e
manifestar minha decisão em mudar minha anatomia para torná-la condizente com
minha condição psíquica.
Dr. Flávio, tratar a Transexualidade como doença é negar direitos, é
subjugar pessoas, é segregar, é discriminar. Tratar minha sexualidade como
doença me fez ir ao fundo do poço, me fez perder minha profissão, me fez perder
tudo o que eu tinha construído ao longo de 35 anos de vida, que agora estou
tentando reestruturar na tentativa de buscar minha felicidade como MULHER que
sou, que sempre fui... desde que nasci.
Em breve teremos a retirada da Transexualidade como doença dos manuais,
mas sei que, mesmo assim, ainda vamos ser maculadas pelo preconceito e
discriminação de uma sociedade doente, que ainda atira bananas aos nossos
jogadores de futebol nos estádios. Ou vai existir algum parlamentar
fundamentalista que vai propor a "cura transexual" em alguma Comissão
Temática do Congresso Nacional ou mesmo como Projeto de Lei.
Ao ler o seu livro, na página 79, eu tive a certeza de que o Sr. não
esperava que uma pessoa transexual pudesse ter acesso a ele, sentada em uma
Universidade, desejando se formar, ser Advogada e quem sabe galgando outros
postos e cargos na carreira jurídica. Somos minoria e sempre seremos pois o
fenômeno da transexualidade vai sempre recair sobre uma minoria, minoria esta
que não pode ser considerada patológica somente por ser minoria, diferente e
destoante dos demais membros da maioria. Minoria esta que possui direitos e que
está hoje, assim como eu, exigindo seu espaço, mesmo sabendo que grandes
batalhas teremos pela frente. Uma delas estou tentando travar agora, nesta
comunicação que lhe faço e que espero que o Sr. avalize e quiçá, altere a
próxima edição de seu livro de DIREITO DE FAMÍLIA V, para que pessoas como eu
não se sintam mais "patológicas" ao lerem seu livro.
Não sei nem mesmo se o Sr. vai responder a este contato, mas gostaria de
deixar registrada minha PROFUNDA DECEPÇÃO a uma pessoa tão ilustre no meio
jurídico, tão inteligente e sábia e que eu sempre nutria inegável admiração.
Atenciosamente e respeitosamente,
Bianca Figueira.
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